“E o que melhor concebemos deixamos de falar.
Espera, alma, até que tuas vestes cinzentas caiam,
E então retome suas tensões quebradas, e busque
Peroração adequada sem deixar ou escravizar.” ¹
Em um sábado preguiçoso, comecei a acordar lentamente enquanto preparava um café e escolhia uma poesia para ler. Influenciada pelo podcast ‘The Daily Poem’, cai por acaso em um poema de Elizabeth Barrett Browning que, até então, eu não conhecia. Em seguida, fui atraída pelo título de um episódio do ‘The History of Literature Podcast’, que mais parecia a manchete de um jornal de fofocas do século passado: ‘Os Poetas Fugitivos – A história de amor triunfante de Elizabeth Barrett Browning e Robert Browning’. Ouvi atenta a uma história incrível, digna dos melhores romances já escritos.
Elizabeth Barrett (1806-1861) foi uma das poetisas mais prolíficas e talentosas da era vitoriana, uma inspiração para Emily Dickensen, Oscar Wilde, Edgar Allan Poe e muitos outros. No entanto, sua vida estava cheia de miséria enclausurada, pois além de ter muitos problemas de saúde que a deixam de cama a maior parte do tempo, seu pai a proibira de se casar. Contudo, seu destino mudou quando, em um dia como outro qualquer, ela recebeu uma carta. Era do poeta Robert Browning (1812-1889) que admirando-a de longe, declarava seu amor, sem nunca tê-la encontrado pessoalmente. ²
Após dois anos de cartas escritas quase diariamente entre eles, Robert e Elizabeth se casaram escondido e fugiram de Londres para Paris, fixando residência em Florença, na Itália. Tiveram um filho e escreveram muitos poemas e poesias, vivendo a efervescência da vida cultural artística da Europa nesse período.
Impactada pela história, imediatamente, fui procurar as obras completas de Elizabeth Barrett e Robert Browning, sendo atraída para um universo que, até então, eu ignorava. Como era possível escrever em versos rimados, significados tão profundos? Trazer reflexões importantes sobre a vida com tanta beleza? Eu afundava naquelas palavras cuidadosamente escolhidas, contadas e rimadas, contidas numa linguagem antiga e difícil para minha mente do século XXI. Um inglês muitas vezes complexo de traduzir, mas que após a ajuda de dicionários e a busca por sinônimos, emergia com força e poder inigualáveis.
Comecei a ler as cartas trocadas entre os dois e, em paralelo, a biografia destes dois poetas que se conheceram de modo tão peculiar. Durante um mês, mergulhei nas cartas, poesias, poemas e sonetos de ambos. Duas histórias muito diferentes que se cruzavam através da poesia. Uma mulher solitária, limitada por doenças físicas, que via o mundo pela janela de seu quarto; e um homem que vivia todas as regalias dos eventos sociais e culturais da alta elite inglesa.
Ela, deitada em seu quarto, esperando a morte chegar; enquanto ele, vagava por jantares e concertos na cidade de Londres. Ambos mergulhados na literatura e escrevendo poesia para encontrar sentido e beleza. Como uma ponte que unia mundos distintos, a literatura criava para ambos uma nova realidade. Uma porta que se abria para um novo universo de encontro, amor e vida.
“Literatura e vida são, de fato, tão absolutamente interpenetradas e tão interdependentes que quase invariavelmente podem ser contempladas como causa e efeito, cada uma reagindo sobre a outra em sequências determinantes.” ³
Eu ficava absorvida por aquelas palavras, que muitas vezes descreviam meu mundo, minhas lutas internas e minha busca por sentido. Eu entendia Elizabeth, sua solidão e limitações. Era como se fossemos amigas e, enquanto tomávamos chá no final da tarde, pudesse ouvir suas palavras de desabafo e tentativa de compreender a si mesma e ao mundo ao seu redor. Foi quando me deparei com um trecho de um poema dela que havia escrito em meu caderno há três anos atrás, por me chamar muito a atenção:
“A terra repleta de céu e cada arbusto comum incendiado com Deus:
mas somente aquele que vê, tira os seus sapatos.
O resto senta em volta e colhe amoras,
e sujam suas faces cada vez mais inconscientes da primeira semelhança.” ⁴
Esse trecho, que antes era de uma desconhecida, agora ganhava cores vivas. Eu conhecia a pessoa que os escrevera. E, mais, eu compreendia o que ela queria dizer com isso. Eu tirava o nariz da página escrita e meus olhos contemplavam ao redor. Eu sentia o calor da sarça ardendo em minha frente, ali na sala da minha casa. E com o coração também queimando, eu tirava meus sapatos cheia de alegria e gratidão por reconhecer a presença daquele que trazia sentido à minha vida e me formava à sua imagem e semelhança.
Há coisas maravilhosas demais para aprendermos sozinhos e fiquei desesperada para contar tudo isso para alguém. Com quem eu poderia compartilhar minha descoberta? Quem iria entender o universo da literatura e ser capaz de se maravilhar comigo? Liguei, então, para meu recente amigo, estudante de Letras e de Literatura Brasileira, despejando sobre ele toda minha descoberta.
Ele foi capaz de entender e se maravilhar comigo, tornando-se meu companheiro de investigação nessa história. Em meio a tudo isso, Elizabeth se apaixonou por Robert, e eu por ele. Juntos, nós quatro encontramos consolo e encorajamento para viver uma grande história, tecida na vida ordinária e contada através de sonetos de amor.
“…o sucesso final é alcançado através de falhas parciais. Do começo ao fim, [Robert] Browning considerava a vida como uma aventura da alma, que afunda, cai, sobe, se recupera, recai na falta de fé em seus poderes superiores, mas vê o erro e pretende recuperá-lo; tateia através da escuridão para a luz; e embora “provado, perturbado, tentado”, nunca cede a forças estranhas e ao fracasso ignominioso. A alma, sendo divina, deve finalmente alcançar a divindade. Essa é a cristalização da mensagem de Browning. (…) E que doçura inimaginável e beleza da vida e do amor esperavam o poeta nos anos que se desenrolavam!” ⁵
Eu entendia as palavras de Robert e compartilhava da doçura e da beleza que tive o privilégio de receber, por graça, em minha própria história. Como Elizabeth, suspeitei de que isso não seria possível e jamais iria acontecer comigo. Mas as palavras de seus poemas me ajudaram a perceber um outro mundo e trouxeram beleza para o meu, fazendo cair minhas vestes cinzentas, acompanhando a transformação do meu pranto em dança.
Obrigada, Robert e Elizabeth, pela vida dedicada à literatura. Por trazerem à existência a poesia, que como música invade a casa sem ser convidada, alcançando ouvidos desatentos e corações cansados. Instrumento de Deus para unir duas pessoas que andavam por aí e foram atraídas por um arbusto em chamas e por poetas sensíveis à sua voz.
“Somos os dois únicos que, face a face,
Conhecem um ao outro,
como Deus conhece a nós dois.” ⁶
¹ Browning, Robert; Barrett, Elizabeth Barrett. The Love Letters of Robert Browning and Elizabeth Barrett Barrett: Romantic Correspondence between two great poets of the Victorian era. 2015, p. 56 (kindle).
² Descrição adaptada do ‘The History of Literature Podcast’, Episódio 95: The Runaway Poets – The Triumphant Love Story of Elizabeth Barrett Browning and Robert Browning.
³ Browning, Robert; Barrett, Elizabeth Barrett. The Love Letters of Robert Browning and Elizabeth Barrett Barrett: Romantic Correspondence between two great poets of the Victorian era. 2015, p. 20 (kindle).
⁴ Elizabeth Barrett Browning: The Complete Poetical Works. Lexicos Publishing, 2012 (kindle).
⁵ Browning, Robert; Barrett, Elizabeth Barrett. The Love Letters of Robert Browning and Elizabeth Barrett Barrett: Romantic Correspondence between two great poets of the Victorian era. 2015, p. 27 (kindle).
⁶ idem, p. 84 (kindle) Palavras atribuídas a Michael Angelo por Vittoria Colonna.