A hora da verdade

Existe uma sensação que só vem às cinco horas da manhã, de qualquer manhã. Pode ser a que devagarzinho vai surgindo pela fresta da cortina, enquanto você está sentada, com seu bebê, inquieto. Pode ser a em que nada ocupa seu colo, mas pesa no coração, antes de seguir para um dia de entrevista de emprego ou primeiro dia de aula.

Essas primeiras horas trazem consigo a verdade, que por alguns minutos parece mais crua do que no restante do dia, a de que será preciso coragem para viver essa porção do tempo que nasce ali. Então, o despertador toca, uma criança chama e o sol já invadiu a sala. Você precisa responder a si mesma, rapidamente, se está sendo interrompida ou na verdade, despertada.

Coisa parecida acontece quando receio não poder esconder o rosto por detrás dos livros e me envolver, sem pressa, com mundos que não são meus e de épocas que não mais existem. Tudo ao redor me chama de volta e eu vou, deixando um lápis
colorido das crianças na página interrompida.

Quando a leitura entrega mais que histórias, mas algo a almejar, a sonhar, e amigos que nos fazem torcer por sua sorte e chorar suas desgraças, um portal se abre, e de repente não há mais interrupções. Entre esses dois mundos unidos, de louças a lavar, compras de mercado a fazer e crianças a buscar na escola, o humor ácido de um homem ainda me faz rir de suas memórias póstumas.  A curiosidade de uma menina que recebia cartas misteriosas me faz falar de filosofia enquanto escolho cebolas e os gestos corajosos de uma certa mulherzinha me incentivam a tentar um pouco mais no sonho guardado na gaveta. Isso é despertar.

Eu vou e volto a essas leituras dentro de um dia comum por pura insistência de quem sabe que nunca se retorna igual de mais uma viagem feita, nem de cada filho que nasce, muito menos de mais uma página lida.

Se entregar a uma boa leitura, pode ser um intervalo na escuridão e pode ser também, encará-la de vez, mas do jeito certo. Não será um simples passatempo. Nem por um segundo sequer uma distração. Fazer os olhos correrem entre parágrafos e capítulos, é um tipo de exercício para a alma, que faz os sentimentos fluírem de maneira ordenada, assim como o sangue é aquecido pelo movimento. Ler é como colocar óculos especiais feitos para quando fecho páginas e olho ao redor, esse do aqui e agora. É pegar emprestado o modo de entender a vida, de alguém que a trilhou de outra forma e seguir a minha, marcada por palavras testadas pelo tempo que ecoam promessas antigas, anseios da humanidade e sonhos.

E é assim que bons livros nos transformam. Porque na companhia deles os sonhos nascem no calar da noite e não morrem ás cinco da matina. A hora da verdade sempre nasce despertando leitores para uma nova página, para um novo dia.