O Morro

Como diriam os poetas, “o amor tem feito coisas que até mesmo Deus duvida”. Ah, o amor, esse sentimento tão falado, declarado, sentido, desejado, alardeado, renegado, compartilhado… e tão contraditoriamente humano.

Mas o que é o amor? O conceito é confuso e pode referir-se apenas ao amor romântico ou ao amor familiar ou, quem sabe, ao amor-próprio… Definir amor pode ser difícil, mas senti-lo é mais fácil, pois acredita-se que todos já o experimentaram em algum momento de sua existência.

“As definições de amor no dicionário tendem a enfatizar o amor romântico, definindo-o primeiro e principalmente como “afeição profundamente terna e apaixonada por outra pessoa, especialmente quando há atração sexual. É claro que outras definições informam o leitor que tais sentimentos podem existir em um contexto não sexual.” (hooks, 2021)

Uns dizem que amam sem amar de fato. Outros amam sem jamais declarar ou assumir tal sentimento. Principalmente as mulheres, que foram educadas para o amor romântico, têm muitas dúvidas para entenderem o amor ou demonstração de sentimento do outro. Bell Hooks diz que:

“Os homens (…) são precavidos porque acreditam que as mulheres dão importância demais ao amor. E sabem que o que nós pensamos sobre o significado do amor nem sempre é o que eles pensam. Nossa confusão em relação ao que queremos dizer quando usamos a palavra “amor” é a origem de nossa dificuldade de amar.” (hooks, 2021)

E é essa dificuldade de definir o que é amor que nos leva à reflexão sobre a obra O morro dos ventos uivantes, de Emily Brontë. Ela pode ser considerada uma história romântica ou apenas uma romantização de um relacionamento abusivo e violento? Antes de responder a essa questão, é fundamental fazer uma apresentação da criatura (a obra) e da criadora (a autora).

O romance foi publicado em 1847, sob o pseudônimo masculino de Ellis Bell, pois a escrita não era considerada uma tarefa para mulheres. A narrativa de um amor obsessivo e violento causou escândalo e furor na sociedade vitoriana daquele período. A obra de Emily Brontë não foi bem recebida. Talvez, o fato de escancarar o que pode haver de mais terrível no ser humano tenha incomodado uma sociedade que não queria ser vista por olhos tão reais.

Emily Brontë era a quinta filha de uma família de cinco filhas e um filho. Nasceu em 30 de julho de 1830, no condado de Yorkshire, na Inglaterra. Muito cedo, ela perdeu a mãe e duas irmãs mais velhas, ficando ela, Charlotte, Anne (a caçula) e o irmão Patrick Branwell. Os filhos do reverendo Patrick Brontë foram educados em casa, sempre cercados de livros. Quando crianças, gostavam de inventar histórias. Emily faleceu aos 30 anos, de tuberculose.

A história do amor obsessivo entre Heathcliff e Catherine ainda possibilita muitas discussões, levanta pontos de vista diversos, causa sentimentos opostos em leitores (há os que amam e os que odeiam a história de Emily) questiona o status quo e continua sendo adaptada para cinema e TV, sendo mais de dez produções desde a primeira, em 1920.

Como disse Italo Calvino (1993), “um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha pra dizer”. Assim, podemos afirmar que O morro dos ventos uivantes não se encerrou em seu tempo, porque ali são representados sentimentos, comportamentos humanos que existem em qualquer sociedade e são atemporais, como amor, ódio, obsessão, vingança, medo, esperança…

Voltando ao questionamento anterior, O morro dos ventos uivantes pode ser lido das suas formas, porém essa leitura deve ser concomitante. O romântico não deve camuflar o abusivo, e este não deve ignorar o amor (doentio, fato) que existe entre Cathy e Heathcliff1.

Desde o primeiro contato entre os dois, quando Heathcliff foi levado para a propriedade da família pelo Sr. Earnshaw, ainda criança, houve uma aproximação entre eles. Diferente do irmão Hindley, Cathy gostou daquele garoto estranho e de pele escura. Os dois entrosaram-se e, até os 15 anos da garota, tornaram-se inseparáveis. De forma tão intensa, que Cathy afirma “eu sou Heathcliff” (Brontë, 2016, p. 111).

Mas a filha do Sr. Earnshaw sabia que uma mulher, vivendo em meados do século 19, na Inglaterra vitoriana, podia muito pouco e o melhor para ela seria abrir mão da existência livre ao lado de Heathcliff e enquadrar-se no modelo esperado para as mulheres, casando-se com Edgar Linton.

Esse é o ponto de virada da narrativa. Com o casamento, Heathcliff some por três anos e, quando retorna, está riquíssimo, veste-se como como cavalheiro, porém continua se comportando de forma rude e brutalizada. no fundo carrega todo amor por Cathy e todo ódio por Linton e Hindley.

Essa mistura de sentimentos é que define esse amor intenso presente na obra. Até quando Heathcliff e Cathy estão juntos e dizem se amar, as palavras não são gentis, eles são agressivos e sarcásticos um com o outro. Os dois se cobram, se acusam, se amam e se odeiam. Nesse vendaval de emoções, o leitor se sente sufocado, mas não consegue deixar a leitura.

Se para Cathy, Heathcliff é ela. Para ele, a filha do Sr. Earnshaw é sua alma. Sem alma não se pode viver. Com a morte de Catherine, o ódio e o desejo de vingança do protagonista aumentam ainda mais. Todos que forem Earnshaw e Linton ele quer destruir, inclusive o próprio filho.

E rezo uma única oração, que hei de repetir até perder o fôlego: Catherine Earnshaw, que você não encontre descanso enquanto eu viver. Disse que a matei… venha me assombrar, então! As vítimas assombram até mesmo seus assassinos. Acredito… sei que há fantasmas perambulando pela terra. Fique comigo sempre, assuma afirma que quiser, faça-me enlouquecer! Só não me deixe neste abismo onde não posso encontrá-la! Ah, meu Deus! É indizível! Não posso viver sem a minha vida! Não posso viver sem a minha alma! (Brontë, 2016, p. 195)

Esse trecho mostra quanto o amor pode ser possessivo e doentio. Entre as cenas de extrema violência por parte de Heathcliff com os outros personagens, há um homem que vive cheio de delírios e busca, desesperadamente, um encontro com sua amada Cathy, mesmo morta.

E o espírito de Cathy vaga pela charneca entre a duas propriedades (Wuthering Heights e Thrushcross Grange) em busca de seu amado. Um amor sem medidas como o de Cathy e Heathcliff sobrevive à morte de forma sombria e beirando a loucura.

Nos anos 2000, a saga Crepúsculo, de Stephenie Meyer fez com que as vendas do livro de Emily Brontë disparassem, isso porque Bela, a protagonista da série juvenil vampiresca, tinha o livro como seu favorito. Para os jovens daquela geração, era um livro romântico. Visto apenas sobre esse ponto de vista pode ser até perigoso nas mãos de quem ainda não tem maturidade para perceber as amarras de um amor doentio e abusivo.

O morro dos ventos uivantes não fala de amor, na narrativa de Emily Brontë encontramos o que há de mais humano nas pessoas, sentimentos distorcidos, intensos, relações cruas e sem lapidação. A forma de amor mais brutal, amor carregado de ódio, de desejo de vingança, de ciúmes. Todos os sentimentos, inclusive a covardia, são reais e não há remediação.Os personagens não nos fazem gostar deles, pelo contrário. Temos antipatia por cada um e por razões diversas, talvez a identificação com o humano deles nos incomode, pois somos (ou podemos ser) assim também.

Os sentimentos são o que há de mais humano, e Emily Brontë colocou todos eles na sua principal obra. É admirável pensarmos que essa criação partiu de uma moça simples, criada numa propriedade rural isolada, sem acesso aos eventos da alta sociedade, tendo perdido a mãe e duas irmãs mais velhas.

Emily criou personagens psicologicamente intensos, baseados em outros personagens de outros autores, como Mary Shelley, Shakespeare, Ann Radcliffe, mostrando como a literatura traz conhecimento de mundo, seja ele externo (vida social, política e econômica) ou interno (relações interpessoais e sentimentos). Essa é uma obra que nos permite diversas possibilidades de análises e pode trazer mais camadas de compreensão em uma ou mais releitura.

_________________

 

1Cathy ou Catherine, neste texto, se refere apenas à personagem da primeira fase da obra.

BRONTË, Emily. O morro dos ventos uivantes. Tradução: Adriana Lisboa. Rio de Janeiro, Zahar, 2016.

CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. Tradução: Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

HOOKS, bell. Tudo sobre amor: novas perspectivas. Tradução: Stephanie Borges. São Paulo: Elefante, 2021.